segunda-feira, 18 de março de 2013

O conto da eternidade


          Quando foi perguntado a Yuri Norstein, diretor de “Conto dos Contos” (1979, 28 minutos), mais célebre curta-metragem russo do século XX e também considerado por muitos o melhor curta de todos os tempos, sobre o que se tratava a comunhão desenfreada de cenas com certo toque de melancolia ao evidente despertar das memórias a resposta foi um tanto quanto inesperada: sobre a eternidade. Para aqueles que já tiveram o privilégio de assistir a obra-prima do diretor a conclusão de um significado para o turbilhão imagens simbólicas pode parecer inalcançável e desafiadora, mas sublimemente incerto que é o indomável prazer que a arte nos concebe.
               Desde a angústia ao presenciar os terríveis anos de guerra até um simples detalhe da lembrança, são estes alguns dos aspectos que faz do curta-metragem russa um verdadeiro conto dos contos, trilhando histórias dentro da história, memórias dentro da memória. A intercalação de cenas postas sem rumo ao contexto de uma linha não cronológica leva-nos a pensar que as imagens possam não relacionar-se entre si, mas tudo não passa de um conjunto de símbolos e enigmas que não devem ser analisados ao “pé da letra”. Imagine-se em um sonho sem nexo recordando dias e pessoas guardadas em seu subconsciente que talvez nem saiba falar sobre quando acordado. É assim que Norstein nos dar as pistas necessárias para a compreensão tão inconsciente usada para a apreciação da obra.
              Yuri Norstein, premiado diretor também idealizador de muitos outros curtas como Ouriço no nevoeiro (1975) e Estações (1969) teve o primeiro roteiro de Conto dos Contos aprovado pelos soviéticos, mas esse não o agradou, produzindo um muito mais ambíguo e emocionalmente complexo do que foi originalmente planejado. O curta justapõe imagens de inocência e felicidade com outras de guerra e soldados, fuga, visões da infância com um pai alcoólico bebendo uma garrafa de vodka. As autoridades de filmes soviéticos, perplexos com a poesia do filme, considerou-o subversivo por sua falta de realismo social e exigiu que Norstein fizesse grandes mudanças. Ele recusou, e por sorte, tinha acabado de ser premiado com uma honra do Estado que tornou praticamente impossível para as autoridades cumprir as suas exigências ou banir o trabalho.
               A atenção que devemos ter ao curta é que as memórias não são relembradas em uma ordem cronológica, mas sim associando um símbolo, ou objeto memorial, a outro. A primeira cena logo introduz uma das lembranças da infância do autor. De início, a maçã verde caída no chão enquanto os pingos de chuva despencam do céu sobre a imagem do pequeno lobo cinzento de olhar assustado ao observar um bebê mamando. Tudo se confunde com a estética sombria e a voz de um personagem desconhecido cantando uma das tradicionais canções russas, porém a mensagem essencial foi captada: a cautela à retroprojeção da memória do diretor em meros segundos nos acolhe como em uma reflexão de nossas próprias lembranças e assim, ficamos tão familiarizados com a obra.
              De repente, surge-nos a tão despropositada casa e a sua porta iluminada à caminho de um quintal. Este o qual deixa-nos por assistir posteriormente desde um touro pulando corda com uma criança à um poeta desesperançado tocando harpa. Outras cenas como fuga do lobo com o pedaço de pergaminho do poeta fracassado e a valsa de casais sob a luz opaca do poste esquecido em alguma rua da Rússia, esta última a qual representa por trás da simbologia as enormes perdas que a União Soviética sofreu na frente oriental durante a Segunda Guerra Mundial, dão a atenção tão intimidante e sensibilizadora ao olhar de qualquer telespectador o qual reconhece a perturbação adorável da nostalgia.
             Conto dos Contos é um grande espelho das reminiscências da vida, sendo aquelas lembradas ou não, e deve ser por vezes contemplado com a noção dúbia que existe na memória humana, provando da esperança ou da retenção, da alegria ou da dor, mas sempre de olhos tão abertos onde um pequeno lobo cinzento, um bebê, batatas assadas, um touro manso pulando corda com uma garota, um poeta com uma harpa, maçãs gigantes caindo na neve serão relembrados escondidos entre os interstícios da recordação para toda a eternidade.